Não é mais possível ignorar a evolução tecnológica que houve após a entrada em vigor da Lei nº 8.666, de 1993, e conceber a gestão, o planejamento, a execução e a manutenção de obra pública, prescindir do uso das tecnologias disponíveis no mercado. Quando da instituição daquela lei vivíamos uma realidade bem diferente da que hoje vivemos, especialmente em relação ao estado da arte da tecnologia da informática (BONATTO, 2018). Por ser extemporânea, a Lei fez com que a Administração Pública deixasse de dialogar com novas tecnologias.
Sempre que a Administração Pública se defronta com uma tecnologia disruptiva que cria uma nova forma de realizar uma atividade, e com novos paradigmas, encontra uma natural dificuldade em normatizar tal realidade. “Com a explosão de novas tecnologias, que põe, ante as ferramentas de direitos administrativos, o desafio de amoldarem à regência dos temas por elas trazidos e guiar a forma como as inovações tecnológicas e os novos mercados que (re) criam nos casos de disrupção devem ser objeto da ação administrativa (RIBEIRO, 2016).
O Projeto de Lei 1292, de 1995, que pretende revogar a Lei nº 8.666, de 1993, além das Lei nº 12.462, de 2011 e da Lei nº 10.520, de 2002, traz a possibilidade de vencer esse obstáculo e aperfeiçoar, quando se trata de obras e serviços de engenharia, a ligação positiva entre uma tecnologia disruptiva e as políticas governamentais.
O art. 19 do PL prevê que os órgãos da Administração com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos deverão promover a adoção gradativa de tecnologias e processos integrados que permitam a criação, utilização e atualização de modelos digitais de obras e serviços de engenharia.
O §3º do mesmo artigo, estabelece, especificamente, que nas licitações de obras e serviços de engenharia e arquitetura, sempre que adequada ao objeto da licitação, será preferencialmente adotada a Modelagem da Informação da Construção (Building Information Modeling – BIM), ou de tecnologias e processos integrados similares ou mais avançados que venham a substituí-la.
Desde a prancheta, régua T e régua paralela, normógrafo, papel sulfurize e vegetal até o autoCAD 2D e 3D podemos afirmar que houve uma evolução na forma de projetar, especialmente pela agilidade e pela facilidade de correção de erros nos desenhos, porém, em que pese tal melhoria, o resultado permaneceu semelhante.
Com o advento do Building Information Modeling – BIM falamos em tecnologia disruptiva.
O Building Information Modeling – BIM, em português “Modelagem da Informação da Construção”, mais que uma tecnologia evolutiva, mas uma tecnologia disruptiva, além de uma ferramenta para planejamento, execução e manutenção de obras de engenharia e arquitetura, trata-se de uma nova filosofia a ser aplicada em todas as fases de uma obra, desde o planejamento à pós-ocupação (BONATTO, 2015). É um dos mais promissores desenvolvimentos da indústria relacionada à arquitetura, engenharia e construção (AEC).
Com a tecnologia BIM, é construído de forma digital o modelo virtual preciso da edificação. Quando completo, este modelo gerado computacionalmente contém a geometria exata e os dados relevantes, necessários para dar suporte à construção, à fabricação e ao fornecimento de insumos necessários para a realização da construção (EASTMAN et al., 2014).
A plataforma BIM traz para os profissionais um método que utiliza a tecnologia para compartilhar informações entre os profissionais que atuam nas diversas fases do empreendimento como jamais a arquitetura, engenharia e construção havia presenciado. Permite a simulação virtual do que se pretende construir, prevendo, inclusive, eventuais problemas a serem enfrentados, além de incorporar “muitas das funções necessárias para modelar o ciclo de vida de uma edificação, proporcionando a base para novas capacidades da construção e modificações nos papeis e relacionamentos da equipe envolvida no empreendimento” (EASTMAN et. al, 2014).
Esta plataforma tecnológica já está à disposição no mercado e vem sendo utilizada em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, proporcionando projetos e obras de engenharia e arquitetura mais transparentes, com a possibilidade de participação ativa da sociedade; redução de custos; diminuição de conflitos e erros em função da melhor compatibilização entre os vários projetos da mesma obra; mais precisão nas estimativas, com projetos mais acurados; e, como consequêncai, o que importa muito ao setor público, redução de aditivos contratuais.
Os benefícios de adoção do Building Information Modeling – BIM em obras e serviços de engenharia no setor público são evidentes, uma vez que é uma tecnologia que traz embarcada uma filosofia que permite o compartilhamento de informações entre os profissionais envolvidos na obra e fornece um protótipo virtual do empreendimento.
Porém, há ainda outros benefícios a serem levados em conta, uma vez que esta tecnologia propicia melhorias expressivas na qualidade técnica, na sustentabilidade e no controle e transparência das obras públicas, objetivando principalmente a melhoria técnica da qualidade dos projetos e obras por meio da compatibilização dos projetos, o planejamento da obra e a precisão do orçamento, bem como melhoria da gestão dos projetos e obras a partir da redução de aditivos, facilitação do acesso à informação, oferecimento de subsídio técnico para tomada de decisão, inibição de desvios de conduta e ampliação da transparência (BRASIL, 2015).
De acordo com a Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura, entre os principais usos da tecnologia BIM, ao longo do ciclo de vida do empreendimento, destacam-se nos projetos: concepção, documentação, visualização, compatibilização, revisão, análise de eficiência energética, avaliação de critérios de sustentabilidade, análises de engenharia, e extração de quantitativos; nas obras: planejamento da logística de canteiro, planejamento e controle 4D; coordenação 3D, fabricação digital; gestão de custos, maquetes virtuais; além do uso na operação e manutenção (ASBEA, 2014).
Tendo em vista que a iniciativa privada tem, aos poucos, se pautado em suas contratações de obras e serviços de engenharia pela utilização da tecnologia BIM, justifica-se a adoção deste instrumento nas obras públicas e transpô-la do mercado para a Administração Pública.
O Estado, com o poder de compras que possui, tem a vocação de ser o grande indutor desta tecnologia disruptiva em suas obras e serviços de engenharia.
Um grande número de governos nacionais em todo o mundo tem previsto uso do BIM em seus projetos e obras, a exemplo da Finlândia, Noruega, Dinamarca, Singapura, Estados Unidos, França, Reino Unido, Itália, Austrália, Espanha, Holanda, Irlanda, Alemanha, Canadá, entre outros. Em alguns países é obrigatória a utilização da plataforma BIM, em outros, é facultativa e, mesmo quando obrigatória, os critérios adotados são diversos: por área a ser construída, por valor do dispêndio financeiro, pelo fato da obra ser ou não pública, ou ainda pelos investimentos serem ou não públicos. O nível de maturidade em que é exigido, de forma obrigatória ou não, varia de país para país.
Felizmente os escritórios de engenharia e arquitetura brasileiros estão, aos poucos, aderindo à essa filosofia, nas áreas de orçamentos, arquitetura, estruturas, instalações prediais e de vedação (ROCHA, 2011). Porém, ainda com muitas barreiras a serem enfrentadas, tais quais a necessidade de mudança de cultura, a carência de metodologias definidas no mercado, a falta de recursos para capacitação, a falta de projetistas que utilizem a plataforma e de demandas de entrega.
O Brasil já possui experiências exitosas e perspectivas muito otimistas em relação ao uso da Plataforma Bim nos empreendimentos públicos.
O Exército brasileiro, para dar um exemplo, tem desenvolvido soluções para o uso adequado da tecnologia BIM, possuindo um Sistema Unificado de Processo de Obras – OPUS, e tendo por base o desenvolvimento de biblioteca, capacitação, processos e normatização. Atuou no projeto da sede do Conselho Nacional do Ministério Público, obra que então estaria embargada e após auditoria foi modelada pelo Exército para o seu prosseguimento. Além do projeto do TRF, no qual foi avaliado que houve uma economia de 40 milhões de reais, e ainda a gestão de 250 projetos em 2013 (NASCIMENTO, 2018).
Outras iniciativas existem no Brasil como no DNIT, no Banco do Brasil, na Fiocruz e na Petrobras.
Destaque deve ser dado à cooperação técnica que está acontecendo entre os Estados do Sul do país. O Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul se reuniram e formaram a Rede BIM Gov Sul. É uma rede de troca de experiências a respeito da tecnologia BIM com a missão de “promover ações integradas de fomento para a implantação de BIM na esfera pública da região Sul, com a visão de ser referência nesse setor, para isso buscam prestigiar valores como cooperação, transparência, sustentabilidade, excelência e inovação. A rede tem feito reuniões, realizado e participado de capacitações em conjunto, criando um ambiente virtual de rede. Os três Estados pretendem definir juntos os critérios para a contratação e recebimento de obras e projetos realizados com BIM e já estabeleceram data para exigência de projetos na plataforma BIM. O Estado de Santa Catarina já possui seu “Caderno de Apresentação de Projetos em BIM” e o Estado do Paraná o “Caderno de Especificação Técnica para Contratação de Projetos de Edificações em BIM”.
Não há dúvidas quanto à necessidade de o Brasil pensar e agir em relação ao BIM como uma política pública que envolva os três entes da federação, estabelecendo normas, padrões, referências, promovendo incentivos para fomentar o uso da plataforma como uma nova filosofia.
Fundamentado nas experiências de alguns países que já se encontram em estágios mais avançados, e nas dificuldades que enfrentaram para adotar o BIM, parece evidente que sua adoção deve ser realizada de forma gradual, estabelecendo critérios que possam, com o tempo e a experiência adquiridas, serem aprofundados.
A Administração Pública brasileira e o mercado da arquitetura, engenharia e construção não estão ainda em estágio avançado para consolidar a utilização do BIM como uma ferramenta cotidiana no desenvolvimento de suas atividades. Mas, a regra geral deve ser, primeiramente, aprender a engatinhar e depois, aprender a andar. Porém, o Brasil tem que continuar a evoluir no desenvolvimento do BIM, estar pronto para esta realidade que, embora possa parecer distante, é certa.
Importa dizer que o PL 1292, de 1995 motiva a utilização desta plataforma, e necessitará estabelecer parâmetros e critérios para a utilização gradativa do BIM nas obras públicas.
A União e alguns Estados membros, como o Paraná e o Rio de Janeiro, instituíram o Comitê Estratégico de Implementação do Building Information Modelling, o que é um passo expressivo para que sejam elaboradas propostas para a utilização do BIM em obras públicas brasileiras.
O BIM não é somente um problema de tecnologia da arquitetura, engenharia e construção, mas de todos os que de alguma forma atuam em qualquer das fases da contratação de obras públicas, do planejamento à pós-ocupação. Deve ser destacada a necessidade do profissional da advocacia, pública e privada, compreender o que vem a ser o BIM, tendo em vista que, a depender do nível a ser exigido nos editais e nas normas, suas manifestações jurídicas exigirão o conhecimento mínimo desta plataforma e suas repercussões no campo do direito, com destaque para a análise dos contratos e dos instrumentos convocatórios.
É hora de todos os atores que atuam em licitações e contratações de obras e serviços de engenharia conhecerem a tecnologia BIM, compreenderem a melhor forma de normatizar esta tecnologia disruptiva, para que não corram o risco de serem surpreendidos, afinal, nas palavras de Howard Ruff, “não estava chovendo quando Noé construiu a arca!
REFERÊNCIAS
ASBEA – Guia de Boas Práticas em Bim. Estruturação do Escritório de Projeto Para a Implantação do BIM. Disponível em http://www.caubr.gov.br/wp-content/uploads/2014/02/Guia_Bim_AsBEA.pdf. Acesso em 08/01/2018.
BONATTO, Hamilton. Governança e Gestão de Obras Públicas: do planejamento a pós-ocupação. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
BONATTO, Hamilton. Critérios Éticos para a Construção de Edifícios Públicos Sustentáveis. Curitiba: Negócios Públicos, 2015.
BRASIL. Secretaria de Estado de Infraestrutura do Estado do Paraná. BIM nas Obras Públicas Disponível em http://www.bim.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=79, 2015. Acesso em 08/01/2019.
EASTMAN, Chuck [et al.] “Manual de BIM: um guia de modelagem da informação para arquitetos, engenheiros, gerentes, construtores e incorporadores. Tradução: Cervantes Gonçalves Ayres Filho. Porto Alegre: Bookman, 2014.
[avatar user=”hamilton.bonatto” /] Hamilton Bonatto é Procurador do Estado do Paraná, onde é Procurador-Chefe do Coordenadoria do Consultivo. Formado em Direito (PUCPR), em Engenharia Civil (UFPR), em Licenciatura Curta em Ciências e Licenciatura Plena em Matemática (FAFIPAR), Especialista em Direito Constitucional (UNIBRASIL), em Construção de Obras Públicas (UFPR), em Advocacia Pública (IDDE) e em Ética e Educação (FACSUL).
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