Após 27 anos de vigência, a Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos administrativos) será revogada pela nova legislação oriunda do Projeto de Lei 4.253/2020 (Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado 559/2013), aprovado no Senado em dezembro de 2020, com despacho de encaminhamento à sanção presidencial.
A Lei 8.666/1993 não deve deixar saudades.
Com efeito, a necessidade de modernização das normas de licitações e contratações públicas tem sido defendida pela doutrina, jurisprudência e pelos gestores públicos.
Isso porque o regime tradicional instituído, inicialmente, pelo Decreto-lei 2.300/1986 e, posteriormente, pela Lei 8.666/1993 sempre foi marcado pelo excesso de formalismos procedimentais e não trouxe o benefício esperado que seria a diminuição da corrupção no bojo dos procedimentos licitatórios, com a redução da discricionariedade do administrador e a ampliação dos mecanismos de controle.
Em verdade, o excesso de formalismo no procedimento licitatório acarreta consequências indesejáveis para as contratações da Administração Pública, entre as quais destacam-se as seguintes:
a) o Estado acaba pagando preços superiores ao de mercado, tendo em vista que os licitantes embutem o custo de participar dessa procedimentalização, permeada por exigências cada vez mais complexas e detalhistas, sendo, muitas vezes, restritivas da competitividade;
b) a morosidade tem sido a tônica desses procedimentos, na medida em que são intermináveis as contendas entre os licitantes – tanto em sede administrativa como no âmbito do Poder Judiciário –, principalmente nas fases de habilitação e de julgamento;
c) toda essa lógica do processo pelo processo, considerando o procedimento licitatório como um fim em si mesmo, contribuiu para a onerosidade de todo o procedimento, acarretando contratações antieconômicas para o Estado.
No âmbito da Administração Pública Gerencial ou de Resultados, especialmente a partir da Reforma do Estado iniciada com a EC 19/1998, a contratação pública deve ser pautada pela busca de maior eficiência, com a melhoria da qualidade dos resultados no relacionamento entre os setores públicos e privados, bem como pela relativização de formalidades excessivas.
Entretanto, sempre existiu um “custo político” em alterar, diretamente, a Lei 8.666/1993. Tanto é verdade que outros projetos enviados ao Congresso não lograram êxito na substituição da Lei de Licitações.
Em consequência, nos últimos anos, o legislador preferiu alterar o regime de contratações públicas de forma setorial, sem modificar, necessariamente, a Lei 8.666/1993, tal como ocorreu, por exemplo:
a) Lei 10.520/2002: criação da modalidade pregão;
b) Decreto 3.931/2001, revogado pelo Decreto 7.892/2013: instituição do Sistema de Registro de Preços – SRP;
c) LC 123/1996: estipulação de tratamento diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte que participam de licitações públicas;
d) Instrução Normativa 01/2010, expedida pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão: normas relativas às licitações sustentáveis;
e) Lei 12.232/2010: regramento específico para licitações de publicidade; f) Lei 12.462/2011: Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC etc.
Os novos diplomas normativos, com intensidades variadas, consagram algumas tendências das contratações públicas, a saber (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática. 9. ed. São Paulo: Método, 2020. p. 138): a) planejamento e responsabilidade fiscal (ex.: relevância da gestão pública na utilização de recursos públicos escassos); b) celeridade do procedimento, com a diminuição de formalidades desnecessárias e a utilização de tecnologia (ex.: inversão das fases de habilitação e julgamento; procedimentos eletrônicos); c) promoção de valores constitucionais fundamentais (ex.: sustentabilidade ambiental); d) preocupação com a eficiência econômica na contratação (ex.: fixação de critérios de desempenho para fixação de remuneração do contratado); e) maior transparência (ex.: a divulgação dos atos praticados na rede mundial de computadores), viabilizando o maior controle por parte da sociedade civil.
De fato, a nova Lei de Licitações, conforme demonstra o texto do PL 4.253/2020, concentra diversas tendências até então encontradas nas leis especiais.
É possível perceber que o novo diploma legal englobará institutos previstos, especialmente, na Lei 10.520/2002 (Lei de Pregão) e na Lei 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC), com a revogação diferida dos referidos diplomas legais. Podem ser mencionados, exemplificativamente, diversos exemplos de tendências incorporadas no novo texto normativo:
a) incorporação do procedimento inaugurado pelo pregão, com a realização, em regra, do julgamento antes da fase da habilitação;
b) orçamento sigiloso, com a publicidade diferida, que já era adotado no RDC. Aliás, a Lei do Pregão e a Lei do RDC serviram de inspiração, anteriormente, para formatação de diversos dispositivos da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais).
Mas não é só isso.
O novo diploma legal preservará grande parte dos institutos tradicionalmente previstos na Lei 8.666/1993 (vide, por exemplo, algumas hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação), bem como positivará instrumentos utilizados, inicialmente, no âmbito das concessões de serviços públicos, com destaque para o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) que terá, portanto, a sua aplicação ampliada para as contratações em geral.
No campo da resolução de conflitos, o novo texto legal ratificará a tendência de utilização de meios adequados (ou alternativos) de solução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem, na forma já verificada em leis especiais (exs: Lei 9.307/1996, alterada pela Lei 13.105/2015; art. 23-A da Lei 8.987/1995; art. 11, III, da Lei 11.079/2004). O diferencial, nesse ponto, é a normatização do Dispute Boards ou comitê de resolução de disputas, instituto já abordado no campo doutrinário como apropriado no campo das contratações estatais (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A arbitragem nos contratos da Administração Pública. Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution – RBADR, Belo Horizonte, v. 1, p. 101-123, jan./jun., 2019).
A inspiração não se restringe aos institutos tradicionalmente previstos nas leis de licitação. Verifica-se, em grande medida, a positivação de orientações consagradas pelos órgãos de controles, especialmente o Tribunal de Contas da União. Assim, por exemplo, a possibilidade de pregão para contratação de serviços comuns de engenharia e a sua inaplicabilidade para contratação de obras (Súmula 257 do TCU), a utilização preferencial da forma eletrônica que, agora, não ficaria adstrita ao pregão (Acórdão 1.515/11, Plenário, Rel. Min. Raimundo Carreiro, 08.06.2011).
É verdade que a nova Lei de Licitações não se resume à incorporação de disposições normativas e orientações já conhecidas pelo ordenamento jurídico pátrio.
Algumas novidades “reais” podem ser encontradas no seu texto, como, por exemplo, a incorporação da modalidade do diálogo competitivo, tradicionalmente utilizado no Direito europeu (Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho), com a extinção das modalidades tomada de preços e convite. Frise-se que vários países europeus incorporaram em seus ordenamentos jurídicos nacionais a previsão do diálogo concorrencial ou diálogo competitivo, tais como: Portugal (arts. 30.º e 204.º a 218.º do Código de Contratos Públicos), França (Dialogue compétitif: arts. 26, I, 3.º, 36 e 67 do Code des marchés publics), Espanha (Diálogo Competitivo: arts. 163 a 167 da Lei 30/2007 – Contratos del Sector Público) etc.
A pergunta que fica é: a nova Lei de Licitações poderia ser mais ousada, com a incorporação de verdadeiras novidades no campo das contratações públicas ? Havia a necessidade de um texto mais prolixo e burocrático que aquele encontrado na Lei 8.666/1993 (a nova Lei apresenta 191 dispositivos contra 126 da antiga Lei) ?
A impressão preliminar é a de que a nova Lei de Licitações, apesar de consagrar tendências importantes, que não eram previstas na Lei 8.666/1993, representa, em grande medida, uma repetição de disposições conhecidas pela comunidade jurídica, com pouco experimentalismo jurídico.
É verdade que, no âmbito da Administração pública do medo, marcada pela confusão entre o erro administrativo e o ato improbo, há pouco espaço para o experimentalismo jurídico por parte da Administração Pública.
Contudo, a legislação poderia servir, justamente, como barreira de segurança para inovações nas contratações públicas, com a previsão de novidades que poderiam ser testadas em ambientes controlados (sandbox regulatório nas contratações públicas).
O legislador poderia ter incorporado, por exemplo, experiências e estudos elaborados por economistas que estudaram a “teoria dos leilões”. Embora os leilões sejam utilizados há séculos, costuma-se citar William Vickrey, ganhador do prêmio Nobel em Economia no ano de 1996, como autor da obra seminal, que reconheceu aspectos de teoria dos jogos na dinâmica adotada em leilões (VICKREY, William. Counterspeculation, Auctions, and Competitive Sealed Tenders. The Journal of Finance, v. 16, n. 1, p. 8-37, mar. 1961). A relevância da teoria dos leilões pode ser demonstrada pelos vencedores do Nobel de Economia de 2020, Paul Milgrom e Robert Wilson, professores da Universidade de Stanford que possuem estudos relevantes sobre o tema.
Sob a perspectiva econômica, a “teoria dos leilões” possui relação com os procedimentos de seleção de compradores ou vendedores de bens e de serviços por meio de propostas de preços, o que abrange, naturalmente as licitações públicas.
O estudo dos leilões é bastante antigo e tem sido intensificado entre os economistas, especialmente a partir da década de 60, com o objetivo de compreender diversas transações econômicas, públicas ou privadas, que são marcadas pela assimetria de informações entre os participantes.
No mundo real, diversos fatores demonstram a dificuldade de escolha de um modelo ideal que sirva para todas as situações (one size fits all). O design do leilão deve ser customizado para cada contexto de contratação, uma vez que o desenho institucional eficiente pode gerar maior competitividade e menor risco de conluio entre os participantes (KLEMPERER, Paul. What Really Matters in Auction Design. Journal of Economic Perspectives, v. 16, n. 1, p. 184, Winter 2002).
Nesse ponto, o legislador perde uma grande oportunidade de considerar a teoria dos leilões na definição dos procedimentos e dos modos de disputas nas licitações públicas, de modo a prever arranjos institucionais compatíveis com o objeto e com o respectivo setor econômico.
Afinal de contas, após, aproximadamente, três décadas de aplicação da Lei 8.666/1993 e de elaboração de estudos sobre as licitações, a expectativa em torno do novo diploma legal era imensa.
Como tudo na vida, existem pontos positivos e negativos na nova Lei de Licitações. De um lado, a adoção de soluções encartadas na Lei de Pregão e na Lei do RDC representam, sem duvida avanços em relação ao regime jurídico tradicional de licitações. Por outro lado, o ponto negativo refere-se ao texto excessivamente detalhado e formalista, com pouca flexibilidade para adaptações necessárias às especificidades das contratações públicas, inserindo no mesmo balaio jurídico objetos contratuais que possuem complexidades diversas, incrementando os custos de transação nas contratações públicas.
De lado os importantes avanços em relação às normas contidas na Lei 8.666/1993, a nova Lei de Licitações, ao incorporar institutos consagrados em leis especiais, positivar orientações dos órgãos de controle e apresentar texto prolixo, parece um grande “museu de novidades” e nos remete à música do inesquecível Cazuza: “Eu vejo o futuro repetir o passado; Eu vejo um museu de grandes novidades; O tempo não para; Não para, não, não para”.
[avatar user=”rafael.oliveira” /] Rafael Carvalho Rezende Oliveira – Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA/RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDAERJ). Professor Adjunto de Direito Administrativo do IBMEC. Professor de Direito Administrativo da EMERJ e do CURSO FORUM. Professor dos cursos de Pós-Graduação da FGV e Cândido Mendes. Advogado, árbitro e consultor jurídico. Sócio fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. www.professorrafaeloliveira.com.br