Fernando Mânica
Foi recentemente aprovado no Senado Federal o Projeto de Lei de Licitações e Contratos Administrativos. O novo diploma legal entrará em vigência quando de sua sanção pelo Presidente da República e, no prazo de dois anos, vai substituir definitivamente a conhecida Lei n. 8.666/93, bem como as leis do Pregão (10.520/02) e do RDC (12.462/11). O novo diploma legal traz uma série de dúvidas à sociedade quanto a seus avanços, em especial no que toca à sua capacidade de atrair boas empresas e evitar a malversação de recursos públicos. Essa análise passa pela percepção de três vetores que pautaram a elaboração da nova lei.
O primeiro diz respeito à preocupação do legislador com a clareza e organização do texto normativo. Ao contrário da lei anterior, a nova lei de licitações é bem organizada e sistematizada, com tratamento detalhado e encadeamento lógico dos temas. Essa racionalidade é importante para uma lei que reúne em um único diploma toda a disciplina de licitações e contratos administrativos da Administração Direta e autárquica do país.
O segundo vetor consiste na colmatação de diversas lacunas existentes na legislação anterior, à luz da interpretação dominante no Poder Judiciário e nos Tribunais de Contas. Muitas disputas intermináveis acerca do alcance de determinados conceitos foram resolvidas por previsão expressa na nova lei. Além disso, numerosas inovações trazidas pela Lei do Pregão e pelo RDC foram incorporadas aos 1.576 dispositivos – entre artigos, incisos, alíneas e parágrafos – da nova lei de licitações.
O terceiro vetor diz respeito a inovações pontuais, como as que reforçam a exigência de planejamento, as que exigem a antecipação de responsabilidades por eventuais eventos incertos que onerem a execução do contrato e aquelas que preveem maior interlocução entre o público e o privado em momento anterior à contratação. São pequenos detalhes e pacatos avanços que, em seu conjunto, aprimoram de modo relevante o ambiente das contratações públicas no país.
Apesar de tais qualidades, o texto legal segue uma vertente arraigada no pensamento jurídico e social brasileiro. Trata-se da extrema desconfiança em relação a todos que participam de um processo licitatório. Dos servidores públicos aos empresários, todos são tidos como oportunistas em busca de uma vantagem desleal. E para conter esse intento pernicioso, a nova lei segue o modelo anterior, detalhando ao extremo e de modo uniforme cada etapa do processo de licitação, por meio de exigências e procedimentos estanques a serem observadas em todo e qualquer procedimento licitatório, realizado pela União Federal e pelo Município de Serra da Saudade (MG).
O problema dessa percepção é que ela desfigura um comando legal que deveria ser instrumento para uma boa contratação, transformando-a em um escudo contra a má contratação. Entretanto, tal proteção acaba sendo transformada em arma a favor da própria corrupção por aqueles que aprendem a manipulá-lo ou, ainda, em munição para a impugnação judicial infinita de processos licitatórios.
Nesse quadro, a licitação deixa de garantir a escolha do melhor produto, do melhor prestador ou do menor preço. Ela passa a produzir a escolha do melhor licitante. Um problema que ocorre também com alguns concursos públicos, que avaliam a mera memorização de preceitos legais. Por vezes, a obsessão normativa pela neutralidade, imparcialidade e objetividade acaba por desnaturar a própria finalidade do instituto, produzindo verdadeira seleção adversa.
Oxalá os três vetores de transformação da nova lei de licitações sejam capazes de induzir um movimento de superação do cenário acima traçado, de modo a que a licitação pública no Brasil passe a atrair empresas especialistas no objeto a ser contratado e não empresas especialistas em licitações e contratos públicos.
*Fernando Mânica é doutor pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo
Fonte: Bem Paraná
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