Em meio ao cenário da pandemia da Covid-19, inúmeros regramentos vêm sendo publicados, principalmente no âmbito da Administração Pública Federal. Após a publicação da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, medidas provisórias foram editadas no sentido de acrescer novos dispositivos à referida Lei, como por exemplo a Medida Provisória n° 951, de 15 de abril de 2020. Tais disposições trouxeram novas hipóteses legais de estruturação e aplicabilidade de normas no âmbito das contratações públicas.
Tratando especificamente da Medida Provisória n° 951/2020, é importante destacar a novidade a respeito da implementação do Sistema de Registro de Preços na sistemática da contratação direta, notadamente nas dispensas de licitação. Não obstante, antes de discorrer sobre esse panorama, relevante trazer à baila os institutos normativos que regem o Sistema de Registro de Preços.
A tão conhecida lei de licitações, a Lei 8.666/93, em seu art. 15, inciso II, trouxe em seu bojo a previsão de que as compras, em sentido lato, sempre que possível, deverão utilizar o Sistema de Registro de Preços. E foi através desse dispositivo que surgiram as primeiras considerações relativas à utilização desse sistema, através de regramento específico concernente ao cenário das contratações públicas.
A Lei Federal continua, no § 3º, destacando a necessidade de regulamentação do dispositivo para definição dos parâmetros de aplicabilidade do Sistema de Registro de Preços. Dessa maneira, sobreveio o Decreto 7.892 de 23 de janeiro 2013, com o fito de regulamentar o Sistema de Registro de Preços, estabelecendo cabimento, critérios e definições a respeito da temática.
O Sistema de Registro de Preços nada mais é que um procedimento especial em que o vencedor da licitação assina a Ata de Registro de Preços e compromete-se a fornecer o objeto licitado de acordo com o quantitativo estabelecido no instrumento convocatório. A Administração Pública, por sua vez, poderá solicitar os bens à medida da sua necessidade (NIEBUHR, 2019).
Importante mencionar que a sistemática do registro de preços pode ser utilizada tanto pela modalidade de concorrência – conforme previsão do art. 15, § 3º, inciso I, da Lei 8.666/93 –, quanto pela modalidade de Pregão, seja eletrônico ou presencial – vide art. 11 da Lei 10.520/2002, que traz disposições relativas às licitações na modalidade de Pregão. Conforme veremos a posteriori, a partir da edição da Medida Provisória 951/2020, mais uma possibilidade de utilização do sistema de registro de preços foi instituída, podendo ser aplicado não somente à concorrência e ao pregão, como se dava em momento anterior a sua publicação, mas também ao procedimento, mais célere, de dispensa de licitação.
O Decreto 7.892/2013 estabeleceu, dentre outras definições, três figuras importantes quando da utilização do Sistema de Registro de Preços, quais sejam: o órgão gerenciador, o órgão participante e o órgão não participante, de acordo com o artigo 2º do Decreto retro. O órgão gerenciador, como o próprio nome já diz, é aquele responsável por gerir todo o procedimento licitatório, buscando estimativas de preço, definindo a pretensão contratual (TORRES, 2018), as especificações do objeto, bem como prazos e locais de entrega dos produtos.
O órgão participante, por sua vez, é aquele que, manifestando a sua vontade em participar de uma licitação promovida pelo órgão gerenciador, irá compor quantitativos do objeto contratual e integrará a Ata de Registro de Preços gerada. No âmbito federal, existe a previsão do instituto da Intenção para Registro de Preços – IRP, uma ferramenta eletrônica disponível no site do Compras Governamentais, em que o órgão gerenciador promove a divulgação da sua intenção em realizar uma licitação sob o Sistema de Registro de Preços. Nesse caso, este será o momento em que o órgão participante poderá manifestar o seu interesse em compor os quantitativos dos itens registrados de um determinado órgão gerenciador (FERNANDES,2016).
Ainda sobre as figuras trazidas pelo Decreto n° 7.892/2013, vale destacar o órgão não participante, também conhecido como “carona” / “aderente” – aquele que deseja aderir a uma Ata de Registro de Preços já existente, após uma licitação sob o Sistema de Registro de Preços já finalizada, frise-se. Nesse sentido, importante mencionar o Decreto 9.488/2018 que trouxe modificações ao Decreto 7.892/2013, no tocante à figura da adesão, estabelecendo limites para a utilização das Atas de Registro de Preços por órgãos não participantes – matéria que foi trazida também na MP n° 915/2020, conforme será detalhado a seguir.
Ultrapassada essa fase preliminar de exposição do conteúdo, tanto da previsão na Lei Federal de licitações quanto do Decreto Federal que regulamenta o Sistema de Registro de Preços, convém detalhar a inovação trazida pela Medida Provisória n° 951/2020. Trata-se de uma medida extremamente curta, com apenas 4 artigos, porém com alterações significativas, principalmente no que diz respeito ao instituto do Sistema de Registro de Preços. Consoante mencionado no início do presente trabalho, a Medida Provisória n° 951/2020 criou uma nova hipótese de utilização do Sistema de Registro de Preços, desta vez, através da contratação direta, especificamente nas dispensas de licitação, mencionadas no § 4º do art. 4º, com a possibilidade de compras compartilhadas.
Ressalte-se, primordialmente, que, diferente das hipóteses tradicionais de dispensa de licitação presentes na Lei 8.666/93, esta hipótese aventada no artigo 4º da Lei 13.979/2020 deve ser utilizada somente para aquisições de bens e serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento do coronavírus. Não somente bens diretamente ligados à área da saúde, mas também àqueles que, justificadamente, estiverem relacionados ao enfrentamento da crise, em atendimento ao interesse público (BOAVENTURA, 2020).
Ademais, o § 4º do art. 4º, incluído na Lei n° 13.979/2020 pela MP n° 951/2020, excepciona a possibilidade de utilização do sistema de registro de preços para as situações em que houver mais de um órgão ou entidade. Nesse ponto é válido destacar que há a necessidade de reunião de pelo menos 2 (dois) órgãos ou entidades para a aplicabilidade do Sistema de Registro de Preços no processo de dispensa de licitação.
Sem sombra de dúvidas, um fator importante, nesse momento da crise da pandemia, é o fator tempo. Em poucos dias um indivíduo, sem aparato médico necessário, dependente de um respirador adquirido na contratação pública, pode vir a falecer. A lei 13.979/2020 surgiu justamente para trazer maior celeridade ao procedimento de compras públicas, em virtude do enfrentamento da COVID-19, já que o regime jurídico administrativo no país, atualmente, é insuficiente e inadequado devido aos processos burocráticos e prazos demorados para a concretização da contratação.
Tratando ainda sobre o quesito tempo, volve-se ao exemplo anterior relativo à necessidade de aquisição de respiradores para atendimento urgente de pacientes acometidos com o coronavírus. Muitas vezes, a decisão a ser tomada não deve ser a contratação através do sistema de registro de preços, pela dispensa, devido à necessidade de composição junto a outro órgão ou entidade, para celebração da avença. Em contrapartida, em situações não tão urgentes, após análise do gestor público, pode ser que seja viável a hipótese de aplicação do dispositivo do § 4º do art.4º incluído na Lei 13.979/2020 pela MP 951/2020. Assim, diante desse cenário pandêmico, cabe ao gestor público avaliar, de maneira assertiva, o quão urgente é a sua pretensão contratual, para definir qual o método a ser utilizado, qual caminho a ser trilhado pela Administração pública para a contratação de determinado bem ou serviço, da maneira mais rápida e eficiente possível.
Ainda na reflexão sobre a utilização do Sistema de Registro de Preços pela dispensa, convém inferir que, as empresas precisam estar atentas à solicitação dos órgãos no processo de dispensa. Significa dizer, quando um órgão entrar em contato para solicitar um “orçamento” para dispensa de licitação, aqui tem-se a verdadeira celebração da contratação, devendo a empresa assumir a obrigação de fornecimento do bem, pelo preço descrito na proposta, e no caso sub examine, pelo período registrado em Ata. Da mesma maneira que os fornecedores devem estar atentos, os agentes públicos também devem, de maneira clara e transparente, celebrar contratos informando os prazos e locais de entrega, para que os fornecedores tenham conhecimento das obrigações a serem assumidas e também, para evitar o fracasso da contratação e a aplicação de sanções administrativas.
Relevante notar que as condições existentes no registro de preço vinculam tanto o fornecedor quanto a Administração Pública, fazendo-se necessário o cumprimento das regras relativas aos preços e condições de pagamento. (JUSTEN FILHO, 2009). Inclusive, em caso de descumprimento contratual, há previsão legal de abertura de procedimento administrativo para aplicação de sanção ao licitante/contratado infrator, tanto na modalidade de concorrência – art. 87 da Lei 8.666/93 – quanto na modalidade de pregão – art. 7º da Lei 10.520/2002 (BITTENCOURT,2019).
Ainda relativamente ao preço, os fornecedores devem manter-se especialmente atentos em relação à precificação da sua proposta bem como ao período de vigência da Ata estabelecida pelo órgão, visto que, na situação atual é notória a escassez de recursos, principalmente de produtos/equipamentos de saúde voltados ao enfrentamento da crise do coronavírus. Assim é que, se um fornecedor participa de um processo de dispensa de licitação sob o Sistema de Registro de Preços, ele precisa saber por quanto tempo ele estará obrigado a fornecer o produto, pelo preço registrado.
Outro detalhe que merece destaque é § 5º do art.4º da Lei 13.979/2020, incluído pela MP 951/2020. É cediço que a Administração pública federal não pode imiscuir-se na competência do regramento dos Estados, Distrito Federal e municípios, já que cada ente federativo constitui uma unidade autônoma, podendo assim instituir regramentos próprios para disciplinar a matéria do Sistema de Registro de Preços. Nada obstante, o § 5º do art. 4º traz a previsão de que, na ausência de regulamento específico, os entes federativos podem utilizar o Decreto 7.892/2013. No entanto, pode-se concluir, que se o Estado ou município tiver regramento dispondo sobre o Sistema de Registro de Preço, poderá utilizá-lo.
Há também uma alteração trazida pela medida provisória relativa à Intenção para Registro de Preços. Nesse ponto, a previsão do § 6º do art.4º é a de que o órgão gerenciador deve estabelecer um prazo entre dois e quatro dias úteis para que os demais órgãos possam manifestar a sua intenção em participar do sistema de registro de preços. Aqui, mais uma vez, é necessário que o gestor público avalie, de forma criteriosa, o quesito tempo, para verificar se a necessidade será plenamente atendida ou se o tempo de espera para composição do sistema de registro de preços prejudicaria o interesse público e a celebração da avença contratual.
Outro ponto que merece menção é o disposto no § 4º do art.4º-G, que prevê que as licitações realizadas pelo Sistema de Registro de Preços serão consideradas compras nacionais, conforme regulamento federal, ampliando a possibilidade de adesão às atas de registro de preços. Nessa questão convém lembrar que, nas hipóteses enquadradas como compra nacional, os limites das adesões são maiores comparados à hipótese de adesão comum prevista no art. 22 § 4º do Decreto 7.892/2013. No caso de compra nacional o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não deverá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado em ata (art. 22 § 4º-A, inciso II do Decreto 7.892/2013), enquanto nas adesões comuns, o limite máximo é o dobro do quantitativo. Assim, a intenção do legislador foi justamente no sentido de dilatar a possibilidade de adesões às atas, em prol da celeridade do procedimento.
Diversos são os fatores, como visto, a serem considerados diante do cenário de crise pandêmica atual. Além do quesito tempo, pode-se mencionar a urgência e a cautela como quesitos necessários à prática administrativa pública em tempos de exceção. No que diz respeito, assim, à legislação em debate, diante de todas as alterações trazidas, o que se mostra aparente é a necessidade de uma atuação célere e eficiente por parte do gestor público, quando das contratações emergenciais destinadas ao enfrentamento da COVID-19 – sobretudo no que se refere à escolha do modelo da contratação; se pregão com prazos reduzidos; suprimento de fundos; dispensa extraordinária prevista no art. 4º da Lei 13.979/2020; ou dispensa pelo Sistema de Registro de Preços. Isto porque, as normas jurídicas apontadas referem-se a uma atuação discricionária do gestor público (ZYMLER, 2020).
Por tudo quanto exposto, o gestor público deve atuar com cautela, motivando os atos e decisões administrativas (OLIVEIRA; PÉRCIO; TORRES, 2020), mas, por outro lado, não tornar-se inerte, paralisado pelo receio das futuras ações de controle, visto que é necessário, mais do que nunca, o atendimento do interesse público da saúde coletiva, através de contratações dotadas de segurança jurídica, com eficiência e celeridade.
REFERÊNCIAS:
BITTENCOURT. Sidney. Infrações e Crimes Licitatórios: avaliando também sanções e penas. Curitiba: Íthala,2019.
BOAVENTURA. Carmen Iêda Carneiro. Breves Considerações à Lei 13.979/2020 e a Pandemia do Coronavírus. Disponível em: www.direitosdolicitante.com
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Adesão de caronas à ata de registro de preços após aquisição de todo o quantitativo por participantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4853, 14 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52798. Acesso em: 18 abr. 2020.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13. ed. São Paulo: Dialética, 2009.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão Presencial e Eletrônico.8.ed.rev.,apl e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2020,p.320.
OLIVEIRA. Rafael Sérgio de; PÉRCIO. Gabriela; TORRES. Ronny Charles Lopes de. A Dispensa de Licitação para Contratações no Enfrentamento ao Coronavírus. 2020. Disponível em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo_detalhe.html TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. Salvador: Juspodivm, 2018, 9ed, p.46.
ZYMLER. Benjamin. Orientações sobre a aplicabilidade da Lei 13.979/2020. Disponível em: www.sollicita.com.br
[avatar user=”carmem.boaventura” /]CARMEN IÊDA CARNEIRO BOAVENTURA – Advogada. Consultora Jurídica em Licitações e Contratos Administrativos. Pós graduada em Direito Administrativo. Pós graduanda em Licitações e Contratos Administrativos