INTRODUÇÃO
“Quem projeta não constrói e quem constrói não projeta”. Essa frase tem sido utilizada como mantra quando se buscam contra-argumentos à possibilidade de os projetistas participarem da execução da obra ou serviços de engenharia.
No âmbito da contratação pública brasileira, a ideia de que o projetista não deve participar da execução está na base de formação do sistema da Lei nº 8.666/1993, que em seu art. 9º, incisos I e II, proíbe que a pessoa natural ou jurídica responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo participe da licitação para a execução de obra ou serviço ou para o fornecimento de bens necessários para a obra ou o serviço projetado[1].
Essa questão envolve aspectos relacionados à técnica e à competitividade/isonomia do processo de contratação. Quanto ao aspecto técnico, a segmentação dos mercados preza por uma segregação das funções: o projetista elaboraria um projeto de qualidade, pois estaria desvinculado dos interesses relacionados à execução (custo da obra etc.); o executor estaria vinculado a um projeto de terceiro, o que garantiria um nível adequado de qualidade. Quanto à competitividade/isonomia, a admissão da participação do projetista na concorrência para a execução desvirtuaria a competição, pois o autor do projeto teria condições – das mais diversas ordens – de adotar posturas na elaboração do projeto que o beneficiassem na competição para o contrato de execução.
Ocorre, entretanto, que a tendência normativa brasileira aponta para outro caminho. A história recente da nossa legislação de licitação e contrato tem cambiado para admitir em diversos institutos a contratação do projetista para a execução.
Essa alteração de rota pode ser observada também em alguns instrumentos do Projeto da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o Projeto de Lei – PL nº 4.253/2020[2]. Porém, é de se perguntar: teria o PL superado totalmente esse paradigma de que quem projeta não executa?
Esse é o ponto que buscamos discutir neste artigo. Para tanto, analisaremos os institutos positivados na nascitura nova ordem e os seus pressupostos teóricos, buscando observar se aqueles parâmetros que embasavam a Lei nº 8.666/1993 ainda permanecem.
1 – A HISTÓRIA RECENTE DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA E A MUDANÇA DE PARADIGMA
A análise da história recente da contratação pública brasileira faz saltar aos olhos um movimento de reforma. A partir da vigência da Lei nº 8.666/1993, esse diploma dominou o sistema de licitação e contrato nacional. Entretanto, com o passar dos anos essa lei não se mostrou capaz de trazer à gestão pública nacional a qualidade e a integridade desejadas.
Tal situação gerou uma insatisfação capaz de ensejar o nascimento de normas com novos institutos para vigorar em paralelo com a lei de 1993[3]. Os maiores exemplos desse movimento foram a Lei nº 10.520/2002, a Lei do Pregão, e a Lei nº 12.462/2011, a Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC.
Este último diploma é o reconhecimento mais claro do insucesso da Lei nº 8.666/1993. Em linhas gerais, o RDC foi gestado para a realização dos eventos esportivos internacionais ocorridos no Brasil na década passada[4]. Ao contrário do pregão, que é destinado a contratações de objeto limitado (bens e serviços comuns), o RDC é amplo, aplicando-se a compras, serviços e obras. Porém, por razões políticas, e não propriamente técnicas, o RDC manteve-se restrito a certos segmentos[5].
Um dos pontos de destaque do RDC é a contratação integrada. Trata-se de um regime de execução dos contratos de obras e serviços de engenharia, previsto no art. 8º, inciso V, da Lei nº 12.462/2011. Nesse modelo, a Administração parte de um anteprojeto em busca de um contrato que “compreende a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto” (art. 9º, § 1º, da Lei nº 12.462/2011).
Nos termos do art. 9º, caput, da Lei nº 12.462/2011, esse regime de execução contratual só poderia ser aplicado se presentes razões de ordem econômica e técnica e desde que envolvesse uma das seguintes condições:
I – inovação tecnológica ou técnica;
II – possibilidade de execução com diferentes metodologias; ou
III – possibilidade de execução com tecnologias de domínio restrito no mercado.
A Lei nº 13.303/2016, a Lei das Estatais, também previu o regime de contratação integrada. Para além disso, essa lei ainda admitiu o regime de contratação semi-integrada, “que envolve a elaboração e o desenvolvimento do projeto executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto” (art. 42, inciso V).
Como se pode observar, nesses regimes contratuais, principalmente no da contratação integrada, funde-se em um só sujeito a elaboração do projeto e a execução. Ressaltamos, entretanto, que nesses modelos a eleição do contratado ocorre em fase única. Ou seja, não existe uma escolha do projetista e depois uma competição para selecionar o executor. Na contratação integrada, o certame é aberto para que se apresente uma única proposta de projeto e execução com todos os seus elementos. Com isso, nesse regime, o responsável pela execução é, necessariamente, o responsável pela elaboração do projeto.
Entretanto, na Lei nº 13.303/2016 há autorização para que a empresas públicas e sociedades de economia mista realizem o Procedimento de Manifestação de Interesse Privado – PMI. Trata-se de uma abertura da entidade estatal para que as empresas privadas lhe apresentem propostas e projetos de empreendimentos voltados para solucionar necessidades previamente identificadas (§ 4º do art. 31). No caso de se seguir ao PMI uma licitação para execução do projeto ofertado pelas empresas privada, a Lei das Estatais diz que “o autor ou financiador do projeto poderá participar da licitação para a execução do empreendimento, podendo ser ressarcido pelos custos aprovados pela empresa pública ou sociedade de economia mista caso não vença o certame” (§ 4º do art. 31).
Como se observa, no caso do PMI, também se tem uma situação em que o autor do projeto está autorizado a executá-lo. Sendo que aí há uma definição do projetista e do executor em etapas distintas. Ou seja, primeiro a entidade contratante escolhe o projeto e, consequentemente, o seu autor; depois ela realiza uma licitação para implementação do projeto, admitindo que o projetista participe da concorrência.
Nesses casos em que a definição do projetista e do executor é faseada, há sempre uma preocupação para que a licitação para seleção do responsável pela execução não seja maculada. Isso porque o projetista poderia conceber um projeto com características capazes de direcionar o segundo certame para si ou para outrem. Então, no caso de procedimento cuja seleção do projetista e do executante é faseada, é preciso que se adote medidas para mitigar o risco de direcionamento da segunda etapa de competição (seleção do executor).
Devemos ressaltar que o PMI também existe em solo pátrio em nível de regulamento. O Decreto nº 8.428/2015 “Dispõe sobre o Procedimento de Manifestação de Interesse a ser observado na apresentação de projetos, levantamentos, investigações ou estudos, por pessoa física ou jurídica de direito privado, a serem utilizados pela administração pública”. Nos termos desse Decreto, os projetos, levantamentos, investigações ou estudos podem ser colhidos da iniciativa privada para subsidiar a estrutura de desestatização e de contratos de parceria (art. 1º).
Na mesma linha do PMI do art. 31 da Lei das Estatais, o art. 18 do Decreto nº 8.428/2015 previu:
Art. 18. Os autores ou responsáveis economicamente pelos projetos, levantamentos, investigações e estudos apresentados nos termos daquele Decreto poderão participar direta ou indiretamente da licitação ou da execução de obras ou serviços, exceto se houver disposição em contrário no edital de abertura do chamamento público do PMI.
Com esses exemplos fica claro que o sistema jurídico brasileiro já abriu possibilidades para que o autor do projeto participe da licitação para a execução da obra, seja por meio de procedimentos concorrenciais de fase única, seja por meio de certames faseado, nos quais primeiro se seleciona o projeto e depois se elege o executor.
É nítida a tendência de se incentivar esse modelo de procedimento. No entanto, embora o ordenamento nacional esteja incorporando esses institutos, ainda remanesce nos diplomas recentes a vedação da contratação da projetista nos casos em que a contratação do projeto e da execução se dá nos moldes tradicionais.
A tradição do Direito da Contratação Pública brasileiro tem a seguinte prática: primeiro se licita o projeto e, depois de sua elaboração, licita-se a execução, sem possibilidade de a projetista participar deste último certame (art. 9º, I e II, da Lei nº 8.666/1993). Ou seja, há uma segmentação do mercado de projetos e de execução.
Como explanado nas linhas anteriores, essa segmentação foi rompida no RDC com a contratação integrada e no regime das estatais com a contratação integrada – e, em certa medida, com a semi-integrada – e com o PMI. Porém, ainda assim, a Lei do RDC (art. 36, I, II e III) e a Lei das Estatais (art. 44, I, II e III) vedam a participação da projetista na licitação da execução, nos casos em que a contratação se dá nos moldes tradicionais.
2 – OS REGIMES DE EMPREITADA E SEUS PRESSUPOSTOS
Ao se examinar os regimes de empreitada existentes no ordenamento jurídico brasileiro verifica-se que há, essencialmente, duas formas de contratos no direito brasileiro semelhantes às do direito alienígena: o chamado Design-Bid-Buildin – DBB (projeto – concorrência – construção) e o Design-Build – DB (Projeto – Construção).
O design-bid-build – DBB é o que mais se aproxima dos regimes de empreitada por preço global, por preço unitário, por tarefa, empreitada integral. Nesses regimes a licitação da obra só acontece após a existência de um projeto básico.
A empreitada semi-integrada se aproxima do design-build, tendo em vista que a empresa contratada para a execução da obra pode, no que o instrumento convocatório permitir e for aprovado pela contratante, ao fazer o projeto executivo propor alterações no projeto básico para, com o projeto alterado, executar a obra.
O Design-Build – DB, por seu turno, é o que mais se parece com o regime de contratação integrada, tendo em vista que quem elabora o projeto básico e executivo é quem executa a obra ou serviço de engenharia, isto é, a adjudicatária da licitação elaborará o projeto e executará a obra.[6]
No Brasil, nos regimes assemelhados ao Design-Build é inerente o fato de que quem faz o projeto executa a obra, isto é, privilegia que aqueles que possuem expertise na execução possam contribuir no planejamento do empreendimento. Essa é a lógica da contratação integrada e da semi-integrada.
Porém, no regime de contratação pública brasileiro tradicional, a lógica é a do Design-Bid-Build, com a vedação de que quem projeta concorra à execução.
3 – O PROJETO DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS
A vindoura nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos virá ao mundo jurídico com a missão de modernizar e até simplificar o ordenamento de contratação pública nacional.
No sentido da simplificação, o diploma nascente reunirá em uma única lei normas que hoje estão dispersas em diversos atos legislativos. Em relação à modernização, o PL nº 4.253/2020 incorpora no regime geral de licitação e contrato das entidades de direito público (Administração direta, autárquica e fundacional) alguns institutos já experimentados em solo pátrio e outros de origem estrangeira.
Cabe dizer que o diploma ora gestado sofreu forte influência do RDC e da Lei do Pregão. O PL em comento revoga essas leis, mas incorpora em si institutos típicos do pregão e do RDC. É perceptível que o PL nº 4.253/2020 também incorporou alguns instrumentos previstos na Lei nº 13.303/2016.
Nesse sentido, a prevalecer o texto aprovado pelo Congresso Nacional, o novo regime de contratação incorporaria a contratação integrada (art. 6º, XXXII, c/c o art. 45, V) e a semi-integrada (art. 6º, XXXIII, c/c o art. 45, VI) e o Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI (art. 77, III, c/c o art. 80).
Mas não são apenas esses os institutos previstos na nascitura lei que rompem com o paradigma de que quem projeta não executa. O PL nº 4.253/2020 importa do Direito Europeu o diálogo competitivo, atualmente previsto na Diretiva 2014/24/UE. Trata-se de uma modalidade de licitação, cujo conceito previsto na vindoura nova lei seria:
modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos; (art. 6º, XLII)
Nos termos do projeto da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, art. 32, essa modalidade de licitação será usada para licitar contratos cujo objeto apresente alguma complexidade de natureza jurídica, financeira ou técnica. Trata-se de um procedimento licitatório no qual o mercado dialoga com a Administração com o objetivo de ajudá-la a definir a melhor solução para a necessidade pública[7]. Ou seja, dada a mencionada complexidade, a Administração recorre ao setor privado para buscar um solução.
É um instituto muito semelhante ao PMI, sendo que este procedimento corresponde a uma etapa anterior à licitação, e o diálogo competitivo é a própria licitação. Em outras palavras, dentro dessa modalidade seleciona-se a solução – no caso, o projeto – e quem será o futuro contratado para executá-la. Na verdade, essa modalidade conta com três fases: a) a seleção prévia dos licitantes (art. 32, § 1º, I e II, do PL); b) o diálogo individual com cada um dos licitantes para a construção/definição da solução (art. 32, § 1º, III a VIII, do PL); c) a competição pelo contrato, que se dará exclusivamente entre os licitantes previamente selecionados, a fim de eleger quem será o futuro contratado (art. 32, § 1º, VIII a X, do PL).
Cabe ressaltar que outra diferença entre o Procedimento de Manifestação de Interesse e o diálogo competitivo é que é admissível a participação de uma empresa que não se fez presente no PMI na licitação destinada a contratar a execução do projeto eleito em seu bojo.
No PL, o PMI é procedimento auxiliar das licitações e das contratações (art. 77). Como já dito, ele é uma etapa anterior à licitação. Primeiro, faz-se o PMI; depois, abre-se o certame para a competição destinada a selecionar o futuro contratado para a execução do projeto. Por isso, podem participar da licitação voltada para contratar a solução eleita no PMI tanto os operadores econômicos que estiveram no PMI, como aqueles que não se fizeram presentes no procedimento prévio. Ressaltamos que o autor do projeto eleito no PMI pode participar da licitação para contratação da execução, não sendo autorizado que a Administração lhe conceda qualquer tratamento preferencial (art. 80, § 2º, I, do PL).
No diálogo competitivo, por sua vez, já se tem a licitação. Por isso, a fase de seleção prévia já determina aqueles que poderão participar das etapas de diálogo e de competição. Se algum empresário se candidata e não é pré-selecionado, ele não poderá participar de nenhuma das etapas futuras. Já os pré-selecionados poderão participar tanto da fase de diálogo, propondo suas soluções, como da etapa de competição. Vale dizer que o autor da solução[8] eleita poderá concorrer à sua execução com os demais pré-slecionados no momento da fase competitiva.
Como se percebe, o diálogo competitivo, então, é mais um instituto no qual se aceita que o autor do projeto venha a ser o responsável pela sua execução. Ressaltamos também que, nessa modalidade, a definição do projeto e de quem o executa se dá em momentos concorrenciais[9] distintos. Isto é, a seleção do projeto e do seu executor é faseada, não ocorrendo ambas as escolhas em um único momento, como é o caso dos regimes de contratação integrada e semi-integrada.
Ainda nessa linha de admissão da execução pelo autor do projeto, vale destacar que o PL, no § 3º do art. 19, dá preferência à adoção da Modelagem da Informação da Construção (Building Information Modeling – BIM) que, segundo o próprio criador dessa metodologia, Charles Eastman, professor do Instituto de Tecnologia da Geórgia, “o conceito BIM envolve tecnologias e processos cujo objetivo é desenvolver uma prática de projeto integrada, na qual todos os participantes convirjam seus esforços para a construção de um modelo único da edificação” [10]. Portanto, a integração entre projeto e execução é a solução que mais se adequa a utilização desta tecnologa prevista no Projeto de Lei.
Ainda, o próprio Eastamn explica que a abordagem Design-Build, no caso brasileiro, os regimes de contratação integrada e semi-integrada, “proporciona uma oportunidade excelente para explorar a tecnologia BIM, porque uma única entidade é responsável pelo projeto e pela construção, e ambas as áreas participam da fase de projeto”[11]. Seria uma incoerência se ao mesmo tempo que se dá preferência ao BIM se restrinja a troca de informações entre o projetista e o construtor.
O BIM, além de trazer as vantagens de acurácia do orçamento e a colaboração entre os envolvidos, se caracteriza por dar transparência aos procedimentos, uma vez que permite o total acesso às informações contidas nos projetos. Com isso, minora o argumento de que quem projeta possui informações que o privilegiam no pleito licitatório. Todos os licitantes passam a ter as informações.
Alguns autores (Konchar & Sanvido, 1998; Palaneeswaran & Kumaraswamy, 2000; Songer & Molenaar, 1996) atribuem grande parte das alterações e adaptações de projetos à falta de interação entre as equipes de projeto e construção[12].
Ao que se vê, a legislação brasileira tem buscado fomentar, ou ao menos possibilitar, essa concentração da projeção e da consequente execução em uma só contratada. O PL, como já dito, em certa medida, segue nesse prumo.
Porém, o projeto da nova lei segue a mesma linha do RDC e da Lei das Estatais, na medida em que prevê institutos que permitem que o projetista concorra pela execução, mas proíbe a sua participação em certames voltados para a execução nos casos em que a contratação se dê pelos moldes tradicionais.
O art. 14 do PL diz:
Art. 14. Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente:
I – autor do anteprojeto, do projeto básico ou do projeto executivo, pessoa física ou jurídica, quando a licitação versar sobre obra, serviços ou fornecimento de bens a ele relacionados;
II – empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou do projeto executivo, ou empresa da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, controlador, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto, responsável técnico ou subcontratado, quando a licitação versar sobre obra, serviços ou fornecimento de bens a ela necessários;
Vale dizer que o § 4º do mesmo artigo excepciona essa proibição para a contratação de obra ou serviço que inclua como encargo do contratado a elaboração do projeto básico e do projeto executivo, nas contratações integradas, e do projeto executivo, nos demais regimes de execução.
Este parágrafo é um corolário de que os incisos I e II do art. 14 do PL trazem uma lógica para os modos tradicionais de contratação de empreitada e outra para os institutos da contratação integrada e semi-integrada. O mesmo se pode dizer dos arts. 32 e 80 do PL, que, respectivamente, trazem desenhos do diálogo competitivo e do PMI em que expressamente admitem que o autor do projeto participe da competição voltada a selecionar o executor da obra.
Diante disso, a questão que se põe é: qual a razão para essa distinção?
Ao que parece, não se está diante de uma questão técnica. Isso porque, como já dito, o PL traz em si diversos institutos que, tecnicamente, rompem com a ideia de que o projetista não executa.
Seria então uma questão relacionada à preservação da higidez da competição destinada à seleção do executor?
Nesse aspecto, é preciso destacar que o modelo tradicional parte de um anteprojeto ou de um programa de necessidades para a contratação de um projetista de forma direta (dispensa ou inexigibilidade) ou para a sua seleção mediante uma licitação. Eleito o projetista, cabe a ele a elaboração do projeto, ao que se segue uma nova contratação (direta ou por licitação) para a execução.
Sendo assim, já enxergamos aqui uma diferença entre esse modelo e o dos regimes de contratação integrada e semi-integrada. Como visto, nestes últimos, o projeto e a execução são, necessariamente, de um só responsável. Por isso, na contratação integrada e na semi-integrada – cada uma em sua medida – há a seleção de um único sujeito para projetar e executar, o que não reclama etapas competitivas diversas. Talvez essa fosse uma justificativa para a diferenciação do art. 14, incisos I e II, do PL. Em outros termos, como não há etapas distintas de seleção no caso da contratação integrada – e em certa medida da semi-integrada, seria possível unir em um só responsável o projeto e a execução, já que a competição se daria no todo.
Acontece, entretanto, que no PMI e no diálogo competitivo, a seleção do projetista e do executor também se dá em momentos distintos, como no caso da contratação nos moldes tradicionais. Aqui, a única diferença é que no PMI e no diálogo competitivo há a seleção da solução (projeto), e não do projetista.
É dizer, nos moldes tradicionais, há uma seleção do projetista com base no preço e/ou seus atributos de qualificação e experiência. Escolhido e contratado, o projetista passa elaborar a solução. Já no caso do PMI e do diálogo competitivo, a disputa se dá com base nos atributos do projeto, e não do projetista. O que é posto em competição é o objeto, e não o preço para a sua elaboração e a qualificação e a experiência de quem o elaborará.
Em linhas gerais, é possível dizer que essa é a distinção mais relevante. Porém, não enxergamos nessa linha de diferenciação um motivo para que esses institutos tenham recebido no PL um tratamento diferenciado. Ao que parece, tanto no projeto decorrente de uma contratação nos moldes tradicionais, como naquele que decorre de um PMI ou de um diálogo competitivo, há um potencial de direcionamento.
O ideal é que a Administração possa tratar esse risco em todas as etapas do processo, seja no momento da concepção da solução, seja na fase de seleção do executor. Vale dizer que no diálogo competitivo tal postura será imprescindível, pois é inerente a essa modalidade a garantia de que o autor do projeto eleito participe da fase competitiva[13].
Ressaltamos que no Direito Europeu, de onde importamos o diálogo competitivo e onde há um procedimento semelhante ao PMI[14], a matéria é tratada no sentido de atribuir à autoridade contratante a decisão e os cuidados necessários para que a participação do projetista não viole a competição isonômica. São esses os termos do art. 41º da Diretiva 2014/24/UE:
Artigo 41º
Participação prévia de candidatos ou proponentes
Quando um candidato ou proponente, ou uma empresa associada a um candidato ou proponente, tiver apresentado um parecer à autoridade adjudicante, quer no contexto do artigo 40º, quer não, ou tiver participado de qualquer outra forma na preparação do procedimento de contratação, a autoridade adjudicante toma as medidas adequadas para evitar qualquer distorção da concorrência em virtude dessa participação do candidato ou proponente.
Entre essas medidas inclui-se a comunicação aos restantes candidatos e proponentes das informações pertinentes trocadas no âmbito ou em resultado da participação do candidato ou proponente na preparação do procedimento de contratação, assim como a fixação de prazos adequados para a receção de propostas. O candidato ou proponente em causa só deve ser excluído do procedimento se não existirem outras formas de garantir o cumprimento do dever de observância do princípio da igualdade de tratamento.
Antes de qualquer exclusão por esses motivos, é dada aos candidatos ou proponentes a oportunidade de demonstrarem que a sua participação na preparação do procedimento de contratação não é suscetível de distorcer a concorrência. As medidas tomadas são documentadas no relatório exigido nos termos no artigo 84º.
Em nossa avaliação, essa seria a postura mais adequada do legislador para as contratações de empreitadas nos moldes tradicionais. A proibição em absoluto do art. 14, incisos I e II, vai contra a ideia dos institutos que estão na lei. Quebra o sistema.
Além disso, poderia até causar questionamentos quanto ao PMI. Isto é, o art. 14, incisos I e II, implica a proibição de que o autor do projeto eleito no Procedimento de Manifestação de Interesse participe da execução da obra ou do serviço? A despeito de fazermos esse alerta, entendemos que o § 2º, inciso I, do art. 80 do PL deixa claro que o autor da solução eleita no PMI pode participar da licitação para contratação da execução. O mencionado dispositivo diz que o realizador do projeto não terá preferências na licitação. Se é assim, é patente que autor pode concorrer na licitação e, se se sagrar vencedor, poderá executar ou participar da execução do seu projeto[15]. Em outras palavras, o § 2º, inciso I, do art. 80 do PL é uma norma específica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se a evolução da legislação referente às contratações públicas no sentido de integrar as várias fases, do planejamento à pós-ocupação.
O legislador tem sido sensível ao perceber as vantagens que o relacionamento e a cooperação entre os projetistas e o executor do objeto podem proporcionar.
A admissão do projetista executar o objeto está espraiada no sistema jurídico brasileiro. Esse fenômeno se percebe nos regimes de empreitada da contratação integrada e semi-integrada, na Lei do RDC e das Estatais e na futura nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos; na modalidade de licitação diálogo competitivo; no Procedimento de Manifestação de Interesse; e na adoção preferencial do Building Information Modelling em obras e serviços de engenharia na área pública.
Não há razão que justifique a opção legislativa em proibir em absoluto que no modelo de contratação tradicional o projetista não possa executar o objeto que ele mesmo planejou. Essa opção vai de encontro à tendência normativa de evolução e da tecnologia embarcada no amplo leque de objetos a se contratar pela Administração Pública.
Não pretendemos dizer que ao se permitir que os projetistas pudessem ser executores do objeto devesse implicar na existência apenas de regime do tipo design build; e sim que se poderia permitir, mesmo em regimes da forma do design bid build, que os projetistas pudessem se habilitar a participar da licitação do objeto e executá-lo se adjudicatários.
Hamilton Bonatto | @ hamilton.bonatto
Procurador do Estado do Paraná, Procurador-Chefe do Consultivo da PGE/PR, graduado em Engenharia Civil, Licenciatura Plena em matemática, Especialista em Direito Constitucional, em Advocacia Pública, em Ética e educação, e em Construção de Obras Públicas. Mestre em Planejamento e Governança. Autor dos livros: (1) Licitações e Contratos de Obras e Serviços de Engenharia (Ed. Fórum); Governança e Gestão de Obras Públicas: do planejamento à pós-ocupação (Ed. Fórum); Critérios Éticos para Construção de Edifícios Públicos Sustentáveis (Ed. NP); BIM para Obras Públicas (Ed. Con) 13 (treze) Cadernos Orientadores para Licitações e Contratos (PGE/PR).
Rafael Sérgio de Oliveira | @rafaelsergiodeoliveira
Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas. Mestre em Direito. Pós-Graduado em Direito da Contratação Pública pela Universidade de Lisboa. Participante do Programa Erasmus+ na Università degli Studi di Roma. Fundador do Portal L&C. Palestrante e Professor em diversos cursos de pós-graduação no Brasil. Co-autor, juntamente com Prof. Victor Amorim, do livro Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, publicado pela Editora Fórum, 2020.
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[1] A matéria é tratada na Lei nº 8.666/1993 com o seguinte texto:
“Art. 9o Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários:
I – o autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica;
II – empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo ou da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto ou controlador, responsável técnico ou subcontratado;
III – servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação.
- 1oÉ permitida a participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada.
- 2oO disposto neste artigo não impede a licitação ou contratação de obra ou serviço que inclua a elaboração de projeto executivo como encargo do contratado ou pelo preço previamente fixado pela Administração.
- 3oConsidera-se participação indireta, para fins do disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista entre o autor do projeto, pessoa física ou jurídica, e o licitante ou responsável pelos serviços, fornecimentos e obras, incluindo-se os fornecimentos de bens e serviços a estes necessários.
- 4oO disposto no parágrafo anterior aplica-se aos membros da comissão de licitação.”
[2] O referido projeto de lei já conta com a aprovação da Câmara e do Senado e agora pende de sanção presidencial, nos termos do art. 66 da Constituição.
[3] Sobre esse tema, vide: ROSILHO, André. Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013.
[4] A Copa das Confederações Fifa de 2013, a Copa do Mundo Fifa de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016.
[5] O RDC acabou sendo expandido para outras finalidades além dos eventos esportivos mencionados, como foi o caso de contratações no âmbito da segurança pública, aquelas voltadas para a área de ciência e tecnologia e outras (art. 1º, da Lei nº 12.462/2011).
[6] BONATTO, Hamilton. BIM para Obras Públicas. Curitiba: Con, 2020.
[7] Sobre o diálogo competitivo, citamos: “Importante notar que está na base de concepção do diálogo a ideia de cooperação do setor privado com os empreendimentos públicos. Por isso, alguns autores indicam que o procedimento em estudo veio ao ordenamento europeu como um mecanismo de viabilizar a política europeia de incentivo às parcerias público-privadas (PPP’s). A complexidade técnica, jurídica e financeira quase que inerente aos contratos de PPP seriam supridas com o procedimento do diálogo na medida em que os possíveis parceiros contribuiriam com a construção da solução.” (OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. O diálogo competitivo do projeto de lei de licitação e contrato brasileiro. Disponível em: http://licitacaoecontrato.com.br/exibeArtigo.html?assunto=oDialogoCompetitivoProjetoLeiLicitacaoEContratoBrasileiro)
[8] Ou os autores das soluções, já que o PL admite que a Administração eleja na etapa do diálogo mais de uma solução (art. 6º, XLII).
[9] Ressaltamos que no PMI e na fase de diálogo da modalidade diálogo competitivo há uma competição a ser julgada pela Administração em relação ao projeto. Ou seja, nessas etapas a Administração não julga as qualidades da empresa, mas sim as características do projeto proposto por ela.
[10] EASTMAN, Chuck, et al. Manual de BIM: um guia de modelagem da Informação da Construção para arquitetors, engenheiros, gerentes, construtores e incorporadoras. Tradução: Cervantes Ayres Filho … et al; Porto Alegre: Bookman, 2014.
[11] EASTMAN, Chuck, et al. Manual de BIM: um guia de modelagem da Informação da Construção para arquitetors, engenheiros, gerentes, construtores e incorporadoras. Tradução: Cervantes Ayres Filho … et al; Porto Alegre: Bookman, 2014.
[12] ALBUQUERQUE et.al. Vantagens, Riscos e Desvantagens na Adoção do Método de Contratação Design-Build pelo Setor Público Brasileiro. Revista Brasileira de Gestão de Negócios. São Paulo, v. 17, n. 54, p. 828-838, jan./mar. 2015.
[13] Em relação ao PMI, o Projeto de Lei não é claro quanto à possibilidade de vedação no edital da participação do autor da solução na licitação que se seguir. Entretanto, entendemos que tal situação possa vir a ser tratada em regulamento, a exemplo do que ocorre com o art. 18 do Decreto nº 8.428/2015, que autoriza o edital a vedar a participação do autor do projeto resultante do PMI na licitação que segue. Salientamos que essa vedação deverá ser justificada, mediante exposição no processo das circunstâncias que demonstram que a participação do projetista no certame ou na execução são prejudiciais para o interesse público.
[14] O art. 40º da Diretiva 2014/24/UE prevê o instituto da Consulta Preliminar ao Mercado, que se assemelha ao PMI.
[15] Vale rememorar que a regra de participação na licitação do autor do projeto eleito no PMI já é posta na Lei das Estatais, que no seu art. 31, § 5º, diz: “§ 5º Na hipótese a que se refere o § 4º, o autor ou financiador do projeto poderá participar da licitação para a execução do empreendimento, podendo ser ressarcido pelos custos aprovados pela empresa pública ou sociedade de economia mista caso não vença o certame, desde que seja promovida a cessão de direitos de que trata o art. 80”. A verdade é que a possibilidade de concorrer na licitação da execução é o que oferece apetite (incentivo) às empresas privadas no PMI. Apesar disso, no Brasil, já enfrentamos questionamentos quanto a essa regra. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, já recomendou ao Poder Executivo federal que o PMI do Decreto nº 8.428/2015 contasse com a “proibição, como regra, à participação dos autores dos projetos/estudos no futuro certame licitatório destinado à outorga de serviços públicos regulados por concessão ou parceria público-privada” (Acórdão nº 1873/2016 – Plenário, item 9.3.4.9).