Há um tempo em que é preciso
abandonar as roupas usadas,
que já têm a forma do nosso corpo,
e esquecer os nossos caminhos,
que nos levam sempre
aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia.
E, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado para sempre
à margem de nós mesmos.
Fernando Teixeira de Andrade. Tempo de Travessia.
Habemus legem! É anunciado ao povo brasileiro que uma nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – LCCA entra em vigor.
A fumaça branca expelida no Diário Oficial indica que se inicia uma nova etapa. Não é o fim, portanto. É o início. Agora é necessário que os entes federativos elaborem seus regulamentos à Lei de acordo com cada realidade.
É tempo de travessia! Então, é preciso compreender que não se trata de regrar a Lei nº 8.666, de 1993, reparada. Não se trata de reembalar a lei a ser revogada. Assim, não se deve pensar em interpretar a nova Lei como se os olhos estivessem locados nas costas.
A Lei nº 14.133, de 2021, se trata de uma outra lei, ainda que sobre as mesmas matérias tratadas naquela revogada. Como quase todas, possui qualidades e defeitos. Mas é nova, é diferente. Tais regulamentos, mesmo que aproveitem experiências do passado, precisam ser elaborados considerando a realidade atual, e manter os olhos orientados para o porvir.
É hora da ousadia! Abandonar a roupa usada, buscar outros lugares, desapegar-se do passado.
A nova Lei nº 14.333, de 2021 tratou da necessidade de um Regulamento, a exemplo do artigo 187, que sugere aos entes da Federação que adotem para si o regulamento federal. Esta opção não é a melhor solução, uma vez que não se coaduna com as diferenças regionais existentes: tipos de compras, formação dos servidores, volume de contratações, tecnologias disponíveis, nível de governança, entre outras. É difícil imaginar que um regulamento da União seja adequado a um pequeno município de menor porte do interior de qualquer um dos Estados brasileiros. A melhor alternativa é que cada ente busque regulamentar a lei de acordo com suas necessidades e especificidades.
A seguir, elencados os itens que a lei traz, explicitamente, que precisam de detalhamento para serem cumpridos, é possível vislumbrar a complexidade desta tarefa:
DISPOSITIVO |
TEMA |
ENTE REGULAMENTADOR |
|
1. |
Art. 1º, § 2º |
Contratações no exterior |
União/Ministro |
2. |
Art. 8º, §3º |
Regras para atuação das funções essenciais |
União, Estados, DF e Municípios |
3. |
Art. 12, VII |
Plano de Contratação Anual |
União, Estados, DF e Municípios |
4. |
Art. 19, I |
Centralização de aquisição e contratação de bens e serviços |
União, Estados, DF e Municípios |
5. |
Art. 19, II e §1º |
Catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras |
União, Estados, DF e Municípios |
6. |
Art. 19, III |
Sistema informatizado de acompanhamento de obras |
União, Estados, DF e Municípios |
7. |
Art. 19, IV |
Modelos de minutas de editais, de termos de referência, de contratos padronizados e de outros documentos |
União, Estados, DF e Municípios |
8. |
Art. 19, V e §3º |
Adoção gradativa de tecnologias e processos integrados – modelos digitais de obras e serviços de engenharia – BIM |
União, Estados, DF e Municípios |
9. |
Art. 20, §§1º, 2º |
Limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo |
União, Estados, DF e Municípios |
10. |
Art. 23, §1º |
Pesquisa de preços |
União, Estados, DF e Municípios |
11. |
Art. 23, §2º |
Parâmetros para valor estimado de obras e serviços de engenharia |
União, Estados, DF e Municípios |
12. |
Art. 25, §4º |
Implantação de Programa de Integridade – obras, serviços e fornecimentos de grande vulto |
União, Estados, DF e Municípios |
13. |
Art. 25, § 9º |
Exigência de percentual mínimo de mão de obra – mulheres vítimas de violência doméstica e oriundos ou egressos do sistema prisional. |
União, Estados, DF e Municípios |
14. |
Art. 26 |
Margem de preferência |
União (I) e União, Estados, DF e Municípios (II) |
15. |
Art. 60Art. 31 |
Leilão |
União, Estados, DF e Municípios |
16. |
Art. 34, §1º |
Custos indiretos, relacionados com as despesas de manutenção, utilização, reposição, depreciação e impacto ambiental do objeto licitado |
União, Estados, DF e Municípios |
17. |
Art. 36 |
Desempenho pretérito |
União, Estados, DF e Municípios |
18. |
Art. 43 |
Soluções baseadas em softwares de uso disseminado |
União, Estados, DF e Municípios |
19. |
Art. 60 |
Ações de equidade entre homens e mulheres |
União, Estados, DF e Municípios |
20. |
Art. 61 |
Negociação |
União, Estados, DF e Municípios |
21. |
Art. 65 |
Habilitação por processo eletrônico de comunicação a distância |
União, Estados, DF e Municípios |
22. |
Art. 67, §3º |
Qualificação técnico-profissional, exceto para obras e serviços de engenharia |
União, Estados, DF e Municípios |
23. |
Art. 67, §12 |
Atestados de responsabilidade técnica a sancionados |
União, Estados, DF e Municípios |
24. |
Art. 70 |
Documentação de empresas estrangeiras |
União, Estados, DF e Municípios |
25. |
Art. 75, §5º |
Dispensa – produtos para pesquisa e desenvolvimento |
União, Estados, DF e Municípios |
26. |
Art. 76, §3º |
Título de propriedade ou de direito real de uso de imóvel |
União, Estados, DF e Municípios |
27. |
Art. 78, I, p único |
Credenciamento |
União, Estados, DF e Municípios |
28. |
Art. 78, II |
Pré-qualificação |
União, Estados, DF e Municípios |
29. |
Art. 78, III e Art. 81 |
Procedimento para Manifestação de Interesse |
União, Estados, DF e Municípios |
30. |
Art. 78, IV; Art. 82, §5º, II, §6º; Art. 86 |
Sistema de Registro de Preços |
União, Estados, DF e Municípios |
31. |
Art. 78, V; Art. 87, caput e §3º; Art. 88, §§4º e 5º |
Registro Cadastral |
União, Estados, DF e Municípios |
32. |
Art. 91, §3º |
Forma eletrônica na celebração de contratos e de termos aditivos |
União, Estados, DF e Municípios |
33. |
Art. 92, XVIII |
Modelo de gestão do contrato |
União, Estados, DF e Municípios |
34. |
Art. 122, §2º |
Subcontratação |
União, Estados, DF e Municípios |
35. |
Art. 137, §1º |
Procedimentos e critérios para verificação da ocorrência dos motivos da extinção do contrato |
União, Estados, DF e Municípios |
36. |
Art. 140, §3º |
Prazos e os métodos para a realização dos recebimentos provisório e definitivo |
União, Estados, DF e Municípios |
37. |
Art. 144, caput e §1º |
Remuneração variável |
União, Estados, DF e Municípios |
38. |
Art. 156, §6º, II |
Competência para aplicação de sanção |
União, Estados, DF e Municípios |
39. |
Art. 161, p. único |
Forma de cômputo e as consequências da soma de diversas sanções |
União, Estados, DF e Municípios |
40. |
Art. 169, §1º |
Práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo |
União, Estados, DF e Municípios |
41. |
Art. 174 |
Portal Nacional de Contratações Públicas |
União |
42. |
Art. 175, §1º |
Sistema eletrônico fornecido por pessoa jurídica de direito privado |
União, Estados, DF e Municípios |
43. |
Art. 184 |
Aplicação da Lei aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres |
União, Estados, DF e Municípios |
Mas não é só. Mesmo que não esteja expressamente na letra da Lei, há outras questões que precisam ser regulamentadas, senão, ao menos discutidas quando da elaboração do regulamento.
A título de exemplos elencam-se: elementos mínimos necessários para a caracterização do anteprojeto e projetos de engenharia (conteúdos técnicos); modalidade concurso; atuação da assessoria jurídica; os papeis do gestor e do fiscal do contrato – detalhes; composição do Bônus e Despesas Indiretas – BDI; centrais de compras; micro e pequenas empresas; obras comuns e especiais; critérios de sustentabilidade para as contratações; elaboração de orçamentos de referência e formação dos preços das propostas e da celebração de aditivos, especialmente para obras e serviços de engenharia; reequilíbrio econômico-financeiro lato senso – procedimentos; predominância de mão de obra; avaliação de desempenho; instrumento de medição de resultado; pós-ocupação; recursos; competência para autorização de processo de apuração e aplicação das diversas penalidades; compras diretas por meio eletrônico.
Ainda há outras questões a serem enfrentadas. A Lei nº 14.133, de 2021, trata da matéria licitações e contratos de forma exaustiva, detalhada, aparentemente não deixando margem para os demais entes da Federação tratem de normas específicas.
Em que pese a já tão comentada distinção entre normas gerais (nacionais) e normas federais (âmbito da União), a Lei não se bastou em tratar das primeiras detalhando e adentrando em matérias alvo de normas específicas. Não há limites ao legislador, porém as previsões devem estar associadas aos órgãos e entidades da Administração Pública federal direta, fundacional e autárquica, e não aos demais entes federativos.
(…) em matéria de licitações, a União poderá editar dois tipos de normas destinadas a disciplinar os aspectos administrativos desse instituto. De uma certa perspectiva, poderá editar normas legais que definam princípios e diretrizes básicas para o instituto da licitação em todo país (normas gerais). Serão, de acordo com a célebre conceituação introduzida por Geraldo Ataliba em nosso direito, verdadeiras normas “nacionais”. De outro ângulo, poderá fixar normas legais de detalhamento, responsáveis apenas por proceder a meras especificações em relação à configuração e ao processamento das licitações (normas específicas). Nesse caso, estas últimas normas por não serem “gerais” no sentido jurídico próprio da expressão deverão ser recebidas como exclusivamente “federais”, ou seja, como regras que se destinam a disciplinar unicamente as licitações realizadas pela Administração Direta ou Indireta da União, e pelas demais pessoas que, por serem controladas direta ou indiretamente por esta, estão submetidas ao dever de licitar.[1]
A Lei nº 14.133, de 2021, o que é de fácil verificação, não é composta apenas de normas de caráter nacional, havendo uns cem números de dispositivos nos seus abundantes 194 artigos que são apenas de âmbito de aplicação da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional. É necessário distinguir os dispositivos que são nacionais dos que são federais, as normas gerais das normas específicas.
Neste aspecto, cumpre anotar a importância de estabelecimento de um critério definidor do alcance da normatização da União no tocante à licitação e aos contratos administrativos. Tal critério funda-se na distinção entre “normas gerais” e “normas específicas”. Com efeito, quando a União estabelece uma “norma geral”, tal diploma ostenta a condição de “lei nacional”, aplicável em todo o território, devendo ser observada indistintamente por todos os entes federativos. Noutra via, ao criar “norma específica” sobre o assunto, tal lei terá âmbito federal, só atingindo a própria União.[2]
As normas gerais, conforme o inciso XXVII do art. 22 da Constituição da República[3], são de competência privativa da União e têm importância na medida que unificam, padronizam, modelam a disciplina das licitações e contratações públicas para todos os entes da Federação. A estes, lhes compete emitir normas específicas, em razão da autonomia administrativa, limitadora da competência da União. Assim, se as normas gerais unificam, as específicas tendem a aproximar da realidade local.
Logo, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competência para editar normas próprias, para disciplinar os aspectos que não se enquadram como norma geral, de modo a complementar a legislação nacional. Esses entes não estão submetidos às normas da União que não possuem caráter nacional.
Não tem sido consensuado quais os dispositivos da legislação brasileira tratam de licitações e contratos como normas gerais e, consequentemente, quais são as normas específicas. No entanto, não há dúvidas da impossibilidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios criarem, por exemplo, modalidades licitatórias, novos critérios de julgamento, menores prazos mínimos para apresentação de propostas e lances. Podem, apenas supletivamente, legislar sobre regras específicas para complementar as normas gerais sem as contrariar.
Uma vez separadas as normas de cunho geral, daquelas de caráter específico, estas, mesmo que constem na Lei nº14.133 de 2021, podem ser previstas de forma diferente da União pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, desde que, nos limites do disposto na Constituição da República. Este tema também se reveste de importância e merece debate quando da elaboração do regulamento.
A publicação da Lei nº 14.133, de 2021, abre um campo fértil para melhorias nas licitações e contratações públicas, para os entes federativos legislarem de acordo com suas próprias realidades. Para tanto, é preciso desapegar das previsões anteriores e, por conseguinte, da jurisprudência e da doutrina fundamentada nas leis que serão revogadas, que aliás, precisarão ser revisitadas e revistas, sob o risco de a nova lei conduzir seus aplicadores aos mesmos lugares de sempre.
Neste momento, reafirma-se: é necessário interpretar a nova lei e regulamentá-la com a visão daquele pescador artesanal que vence a rebentação e segue mar afora abandonando a tranquilidade e o conformismo de quem somente pisa na areia da praia para alimentar sua esperança de melhores dias.
É o tempo da travessia. É o tempo da ousadia! … Tempo de “esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares” … ou ficaremos para sempre “à margem de nós mesmos”.
[1] CARDOZO, José Eduardo Martins. Leis Estaduais e Municipais em matéria de Licitação. Fórum de Contratação e Gestão Pública. Belo Horizonte, ano 4. N.39, mar. 2005.
[2] AMORIM, Victor Aguiar Jardim. O que “sobra” para Estados e Municípios na competência de licitações e contratos? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jan-22/sobra-estados-municipios-licitacoes-contratos. Acesso em: 24.mar.2021.
[3] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (…) XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III