Hamilton Bonatto[1]
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
O Engenheiro. João Cabral de Melo Neto
O Senado Federal aprovou, no dia 10 de dezembro de 2021, o Projeto de Lei nº 4253, de 2020 que “estabelece normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
No PL, assim como na Lei nº 8.666, de 1993, na Lei 12.462, de 2011, que serão revogadas, e na Lei nº 13.303, de 2016, se destaca a atenção dada às contratações de obras e serviços de engenharia. Isto se deve a vários fatores, entre eles a complexidade que envolve esse tipo de contratação e a quantidade de recursos investidos nesses empreendimentos públicos.
Em artigo recente que chamei de “Obras Públicas na Nova Lei de Licitações: um mar de institutos que esperançam” [2] elenquei vários institutos que a Lei oferece tendentes a trazer melhoria das contratações de obras e serviços de engenharia: regimes de contratação integrada e semi-integrada; o novel regime de fornecimento e prestação de serviço associado; o Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI; o Sistema de Registro de Preços para obras e serviços de engenharia; a nova modalidade Diálogo Competitivo, inclusive a ser conduzido por 3 (três) servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração; a adoção preferencial pelo Building Informantion Modeling – BIM; a necessidade do Estudo Técnico Preliminar – ETP para as obras e os serviços de engenharia; a possibilidade do orçamento sigiloso; o seguro garantia e step-in-right para as obras; a necessidade da matriz de riscos para obras e serviços de grande vulto ou quando forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada; a necessidade de depósito em conta vinculada dos recursos financeiros necessários para custear as despesas correspondentes à etapa a ser executada das obras; o critério socioambiental para a execução das obras contratadas; proteção do patrimônio histórico, cultural, arqueológico e imaterial, inclusive por meio da avaliação do impacto direto ou indireto causado pelas obras contratadas; e a acessibilidade para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
Esses exemplos dão a dimensão da importância das licitações e contratações de obras e serviços de engenharia e, com isso, a essencialidade da atuação dos(as) profissionais de engenharia e arquitetura públicas.
O fato é que independente desse bem-vindo mar de institutos na nova Lei, tudo ficará como está se não houver uma engenharia e arquitetura de qualidade na Administração Pública, prestigiada, respeitada e valorizada.
No entanto, mesmo com todos esses institutos previstos na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – LLCA, infelizmente os governos, nos três níveis da Federação, deixaram de investir nas carreiras profissionais da engenharia e arquitetura por muito tempo e, agora, se veem em situação de dificuldade para planejar, executar e fiscalizar os empreendimentos públicos.
Outras carreiras públicas não tiveram o mesmo destino. O que aconteceu, por exemplo, com as carreiras da advocacia pública é o extremo oposto da realidade das carreiras de engenharia e arquitetura pública.
A Advocacia Pública é reconhecida, e tem todos os méritos para isso, como competente e atuante, formada pela elite do conhecimento jurídico brasileiro. Essa situação não ocorreu por um toque de mágica. Houve uma orquestração consciente para que aquela carreira chegasse a esse patamar. O resultado de sua excelência provém de uma boa remuneração e com profissionais incentivados ao aperfeiçoamento constante. Para que isso acontecesse, foi necessário compreender a importância de se ter uma Advocacia Pública da qualidade que se conhece.
Na engenharia e na arquitetura da Administração Pública não se teve a mesma visão, não se buscou uma melhor forma de fortalecimento das carreiras, ao contrário, houve uma orquestração para suas aniquilações embaladas por uma política neoliberal sob o manto da cantilena do discurso de um Estado Mínimo.
Enquanto a engenharia brasileira é orgulho nacional. Porém, não se percebe que haja um desejo que ela seja excelência na Administração Pública, onde há excelentes profissionais, com formação sólida e perfil vocacionado à coisa pública, no entanto, em número reduzido e com condições de trabalho inferiores ao mínimo necessário.
Como imaginar que o Brasil possa caminhar em rumo a um desenvolvimento sem a valorização desses profissionais? Como idealizar a eficiência da Administração pública com a escassez de profissionais nessas carreiras? Como aprimorar as atuações dos profissionais sem que lhes seja oferecidas as condições de recursos humanos e materiais mínimas necessárias?
Bresser Pereira, ao comentar a falta de capacidade de formulação e de gestão de projetos, foi pontual em dar a causa dessa situação: faltam engenheiros no Estado brasileiro. Para o economista, professor, ex-Ministro da Economia, ex-Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado e ex-Ministro da Ciência e Tecnologia (1999):
Há advogados e economistas de sobra, mas faltam dramaticamente engenheiros. Enquanto mais de 80% da alta burocracia chinesa é formada por engenheiros, no Brasil não devem somar nem mesmo 10%.
Ora, se há uma profissão que é fundamental para o desenvolvimento, tanto no setor privado quanto no governo, é a engenharia. Nos setores que o mercado não tem capacidade de coordenar são necessários planos de investimento, e, em seguida, engenheiros que formulem os projetos de investimento e depois se encarreguem da gestão da execução.
(…)
Há quatro setores no governo: jurídico, econômico, social e de engenharia. Ninguém tem força para desmontar os dois primeiros; seria possível desmontar o setor social, mas, com a transição democrática e a Constituição de 1988, ele passara a ser prioritário. Restava o setor de engenharia -foi esse o setor que se desmontou enquanto se privatizavam as empresas.[3]
Ao final o Professor Bresser Pereira acrescenta que “fortalecer a engenharia brasileira nos três níveis do Estado é prioridade”. Para quem conhece de perto as licitações e contratações de obras e serviços de engenharia essa frase é uma obviedade, porém, não temos visto sensibilidade a este fato na reação dos governantes. Os governantes não compreendem ou não querem compreender que a profissão de engenheiro é fundamental para o desenvolvimento, tanto no setor privado quanto no governo, bem como, some-se a de engenheiro, a de arquiteto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
Fábula de Um Arquiteto. João Cabral de Melo Neto
O legislador, deve ser dito, ao contrário do que se vê no dia a dia das repartições públicas, aparentemente, ao elaborar o PL 4253/2020, viu a essencialidade desses profissionais nas licitações e contratações de obras e serviços de engenharia.
Prevê, por exemplo, no art. 7º do PL, que caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução da Lei, e esses devem ser, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública e, ainda devem ter atribuições relacionadas a licitações e contratos ou possuam formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público.
As atividades essenciais à execução da futura Lei de Licitações e Contratos Administrativos – LLCA – quando se trata dos objetos obras e serviços de engenharia, necessitam, na maioria das vezes, de profissionais com prerrogativas legais de funções, como as têm os(as) engenheiros (as) e os (as) arquitetos(as), isto é, com formação compatível com a atividade a ser exercida, e ainda, preferencialmente, servidores efetivos ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública.
Para atuar na Administração Pública exige um perfil profissiográfico bastante abrangente. Não são poucas as atividades a serem exercidas por esses profissionais. Tanto o(a) engenheiro(a) civil[4] como o(a) arquiteto(a)[5] devem possuir um grau de especialização técnica expressiva para o exercício desses cargos.
Há atividades, desde o planejamento até a ocupação de um ambiente construído que não só é conveniente como imprescindível a participação de profissionais da engenharia e arquitetura. Para citar alguns, exemplifica-se com a elaboração de um estudo técnico preliminar para a licitação de uma obra ou serviço de engenharia; a elaboração de termos de referência para esses objetos; a elaboração de documentos técnicos instrutores, como de estudos, laudos, pareceres, anteprojetos de engenharia e arquitetura; e, especialmente, a fiscalização das obras e serviços de engenharia, inclusive seu recebimento provisório e definitivo, além de todas as atividades técnicas na pós-ocupação, como a operação e a manutenção do ambiente construído.
Quase sempre, e isso precisa ser compreendido, os profissionais de engenharia e arquitetura que atuam na Administração Pública não são responsáveis pela execução das obras; nem mesmo, na maioria das vezes, são responsáveis técnicos pelo projeto básico e executivo, mas atuam em fase anterior a essa, planejando, elaborando estudos técnicos preliminares, termos de referência, programas de necessidades, anteprojeto, entre outros. Após contrato firmado com a Administração, sua principal ocupação é a fiscalização das obras e serviços de engenharia[6] com suas múltiplas atividades.
Em que pese toda a importância dessas atividades e a atenção que a Lei tem dado e que a nova Lei dará à engenharia e arquitetura públicas, a tendência tem sido o encolhimento dessas carreiras por meio de diversas estratégias: diminuem os concursos públicos para elas; designam-se agentes externos à Administração ou possuidores de cargos em comissão para a fiscalização de obras e serviços de engenharia para, assim, ter um maior controle nas decisões fiscalizatórias e um maior poder sobre os profissionais que exercem essa atividade; oferecem-se remunerações incompatíveis com a responsabilidade desses profissionais[7], desmotivando aqueles que têm vocação para a coisa pública.
Têm-se buscado apequenar a importância das atuações dos(as) engenheiros(as) e arquitetos(as) públicos nas diversas fases de uma contratação pública oferecendo menos recursos humanos e materiais para o exercício de seus desígnios; criam-se discursos de que as obras não possuem a qualidade esperada por falha da Administração Pública e, com isso, dos profissionais da engenharia e arquitetura que lá atuam, como se a atuação ineficiente das empresas privadas não fosse razão para muitos dos fracassos das contratações de obras e serviços de engenharia.
Apequenar a engenharia e arquitetura públicas transforma a possibilidade de desenvolvimento do país apenas em discurso. Não são apenas as próprias carreiras as prejudicadas com essa postura, mas, e principalmente, o próprio desenvolvimento nacional.
Há uma clara dissonância entre a conotação dada pela nova Lei à engenharia e à arquitetura públicas e a atuação dos Governos que, em regra, de forma comissiva ou omissiva, agem para enfraquecer essas carreiras.
Se realmente se almeja que as obras e os serviços de engenharia tenham resultados mais satisfatórios, deve se começar pelo fortalecimento das carreiras de engenharia e arquitetura: mais recursos humanos e materiais; melhores condições remuneratórias, fomento e oportunidades de capacitações; internalização de tecnologias para projetos e obras.
Ou isso, ou fica tudo como está!
[1] Hamilton Bonatto é Procurador do Estado do Paraná; Procurador-Chefe da Coordenadoria do Consultivo; Mestre em Planejamento e Governança Pública; Engenheiro Civil; Licenciado em Matemática Plena; Autor, entre outros, dos livros Licitações e Contratos de Obras e Serviços de Engenharia e Governança e Gestão de Obras Públicas: do planejamento à pós-ocupação, ambos pela editora Fórum.
[2] BONATTO, Hamilton. Obras Públicas na Nova Lei de Licitações: um mar de institutos que esperançam. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/obras-publicas-na-nova-lei-de-licitacoes-um-mar-de-institutos-que-esperancam/
[3] PEREIRA, Bresser. A Falta de Engenheiros no Estado Brasileiro. Folha de S. Paulo, 27.08.2012. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace;/bitstream/handle/10438/16080/Onde%20est%C3%A3o%20nossos%20engenheiros.pdf
[4] Exemple do Perfil Profissiográfico de Engenheiro: Elaborar, executar, dirigir e fiscalizar projetos públicos de engenharia civil relativos a rodovias, portos, aeroportos, prédios, vias férreas, sistemas de água e esgoto e outros. Preparar planos e métodos de trabalho. Possibilitar e orientar a construção, manutenção e reparo de obras públicas. Assegurar a execução das obras dentro de padrões e exigências técnicas. Emitir pareceres técnicos. Planejar, desenvolver e executar e acompanhar projetos públicos de operacionalização e manutenção de obras. Controlar a qualidade dos suprimentos e serviços executados. Elaborar normas e documentação técnica. Disponível em: PARANÁ. Secretaria de estado da Administração e da Previdência – SEAP. Resolução nº 5.875/05. Disponível em: http://www.administracao.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2019-06/perfil_profis_funcoes_ag_prof_res_5875_2005.pdf.
[5] Exemple do Perfil Profissiográfico de Arquiteto: Planejar, elaborar, coordenar, dirigir, supervisionar, orientar, auditar, executar e fiscalizar serviços e projetos públicos arquitetônicos de edifícios, interiores, paisagísticos urbanísticos monumentos e outras obras, em todas as suas etapas, definindo materiais, técnicas e metodologias; preparar esboços de mapas, plantas e maquetas; elaborar cronograma físico e financeiro de obras e serviços; elaborar laudos, perícias e pareceres técnicos; assessorar a formulação de políticas públicas e o estabelecimento de diretrizes para legislação urbanística, legislação ambiental e para preservação do patrimônio natural e cultural; promover integração entre a comunidade e os bens edificados; realizar estudos de pós-ocupação; trabalhar segundo normas técnicas de segurança, qualidade, produtividade, higiene e preservação ambiental; elaborar documentos e difundir conhecimentos na área; emitir pareceres, informações técnicas e demais documentações; analisar; processar e atualizar dados, informações e indicadores. PARANÁ. Secretaria de estado da Administração e da Previdência – SEAP. Resolução nº 9.022/09. http://www.administracao.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2019-06/perfil_profis_funcoes_ag_exec_ag_prof_res_9022_2009.pdf
[7] Pesquisa de 2009, do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) revela que o salário baixo é outro empecilho para que os engenheiros civis atuem no serviço público. Segundo o levantamento, 84,4% dos profissionais que estavam no mercado formal há quatro anos ocupavam cargos em empresas privadas e apenas 15,6% estavam empregados em organismos de governo. Outro detalhe relevante é que, em 2009, 60% dos que desempenhavam a função de engenheiro no poder público, fosse nas esferas federal, estadual ou municipal, ganhavam menos do que os que estavam no setor privado. In Massa Cinzenta. Falta de Engenharia Pública Gera Desperdício. https://www.cimentoitambe.com.br/massa-cinzenta/falta-de-engenharia-publica-gera-desperdicio/ 28.jan.2013.
A Engenharia E Arquitetura Na Administração Pública E O Desenvolvimento Nacional
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